O domínio das operações de adição e subtração não é pré-requisito para compreender as propriedades do campo multiplicativo que deve ser trabalhado desde o 1º ano
APRENDER E FAZER Com a abordagem correta, o aluno avança de forma autônoma na resolução de problemas. Foto: Eduardo QueirogaA partir de quando é possível abordar a multiplicação e a divisão na escola? A resposta é de ouriçar os educadores mais conservadores: elas já podem aparecer nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Problemas envolvendo ambas as situações devem ser explorados em um trabalho continuado que percorra toda a escolaridade. Outra visão que se modificou nos últimos anos diz respeito à segregação do multip licar e do dividir. Por que tratá-los como etapas diferentes se a ligação entre eles é tão estreita?
A ideia defendida por especialistas de renome é buscar cada vez mais evidenciar as relações existentes entre as operações, mesmo antes da sistematização de seus algoritmos.
Desenvolver a compreensão dos conceitos por trás das operações e dar condições às turmas para que joguem com as estruturas multiplicativas amplia a visão sobre a Matemática. Resultado? O aluno avança de forma autônoma na resolução dos problemas e o que parecia indecifrável começa a fazer sentido (leia quadro abaixo).
A classificação da multiplicação e da divisão
Assim como no campo aditivo, os problemas do campo multiplicativo foram divididos em categorias pelo psicólogo francês Gérard Vergnaud. Com essa organização, é possível trabalhar os conceitos de multiplicação e divisão já nos primeiros anos do Ensino Fundamental.EXEMPLO | OBSERVAÇÃO | VARIAÇÕES |
Proporcionalidade | ||
Na festa de aniversário de Carolina, cada criança levou 2 refrigerantes. Ao todo, 8 crianças compareceram à festa. Quantos refrigerantes havia? | • Oito crianças levaram 16 refrigerantes ao aniversário de Carolina. Se todas as crianças levaram a mesma quantidade de bebida, quantas garrafas levou cada uma? • Numa festa foram levados 16 refrigerantes pelas crianças e cada uma delas levou 2 garrafas. Quantas crianças havia? • Quatro crianças levaram 8 refrigerantes à festa. Supondo que todas levaram o mesmo número de garrafas, quantos refrigerantes haveria se 8 crianças fossem à festa? | |
Marta tem 4 selos. João tem 3 vezes mais do que ela. Quantos selos tem João? | • João tem 12 selos e Marta tem a terça parte da quantidade do amigo. Quantos selos tem Marta? | |
Organização Retangular | ||
Um salão tem 5 fileiras com 4 cadeiras em cada uma. Quantas cadeiras há nesse salão? | • Um salão tem 20 cadeiras, com 4 delas em cada fileira. Quantas fileiras há no total? • Um salão tem 20 cadeiras distribuídas em colunas e fileiras. Como elas podem ser organizadas? | |
Combinatória | ||
Uma menina tem 2 saias e 3 blusas de cores diferentes. De quantas maneiras ela pode se arrumar combinando as saias e as blusas? | • Uma menina pode combinar suas saias e blusas de 6 maneiras diferentes. Sabendo que ela tem apenas 2 saias, quantas blusas ela tem? • Uma menina pode combinar suas saias e blusas de 6 maneiras diferentes. Sabendo que ela tem apenas 3 blusas, quantas saias ela tem? | |
Consultoria Célia Maria Ccarolino Pires, coordenadora da Pós-graduação em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Priscila Mmonteiro, formadora do programa Matemática É D+ Ilustrações: Carlo Giovani |
Com tantas negativas em seus pontos-chave, a teoria de Vergnaud se coloca em contraposição ao ensino convencional. “Trabalhar com campos conceituais é romper o contrato didático estabelecido tradicionalmente”, explica Lilian Ceile Marciano, orientadora pedagógica e formadora de professores da Escola da Vila, em São Paulo. “Primeiro você apresenta a situação-problema. Só depois de ela ser elaborada pelos alunos, é possível começar a discussão sobre as possíveis estratégias para resolvê-la.” O aluno pode não ter familiaridade com o algoritmo nem perceber que a adição repetida faz parte do caminho para a multiplicação, mas vai se apropriando da operação com as ferramentas que já possui.
Diferentes enunciados criam variados olhares
A divisão traz, desde o início, um fator de complexidade quando comparada às operações do campo aditivo: ela trabalha com quatro termos – dividendo, divisor, quociente e resto –, em vez de apenas os três da adição e da subtração (confira outras características no quadro abaixo). A diversidade de tipos de problema exige o domínio das diversas relações matemáticas para ser resolvida.
Divisibilidade sem decoreba
Todo número par é divisível por 2. Um número é divisível por 3 se a soma dos algarismos que o compõem for divisível por 3. Regras como essas talvez pareçam práticas no trabalho com a divisibilidade, mas o seu uso pode incorrer na mesma questão dos algoritmos: ele perde o sentido se não for revestido de significação para a garotada. Ao decorar a “fórmula mágica”, que verifica se um número é divisível por outro sem fazer a conta armada, é possível ofuscar a maior riqueza desse tipo de atividade: que a criança perceba as regularidades da divisão. “Em problemas de máximo divisor comum (MDC), por exemplo, os alunos costumam começar simplesmente testando o maior número”, diz Priscila Monteiro, formadora do programa Matemática É D+, da Fundação Victor Civita (FVC). “Essa estratégia é positiva e deve ser validada pelo professor.” Ela destaca que o interessante do trabalho com atividades que envolvem divisibilidade é o potencial de discutir estratégias e, em conjunto, elaborar hipóteses de generalização de fenômenos – o que mais tarde as turmas verificarão serem propriedades da divisão.Há também como alterar o local da incógnita na operação, usando sempre os mesmos termos: 17 balas foram distribuídas igualmente entre um número de crianças, cada uma ficou com 3 e sobraram 2. Quantas crianças havia? Nesse caso, a relação de inverso entre multiplicação e divisão é o destaque. Quanto mais tipos de problema as turmas conhecerem, mais elas ampliarão a compreensão das operações e aumentarão o repertório de estratégias para elucidar os desafios.
Percebe-se também que relações referentes ao campo aditivo, como a composição e a decomposição de números, servem como uma base para progredir no campo multiplicativo, assim como a compreensão do valor posicional e real dos algarismos.
Conhecer os tipos de trabalho é chave para ensinar melhor
Até o 5º ano do Ensino Fundamental, é importante trabalhar com três conceitos do campo multiplicativo: a proporcionalidade, a organização retangular e a combinatória. Com a proporcionalidade, a criança percebe a regularidade entre elementos de uma tabela – se um pacote tem 5 figurinhas, 2 pacotes têm 10, 3 pacotes têm 15 etc. – e deve também ter oportunidade de constatar a ideia da proporcionalidade inversa (fenômeno da diminuição proporcional de um dos elementos com o aumento do outro. Exemplo: uma caixa-d’água tem seu volume diminuído pela metade a cada semana. Quanto tempo levará para chegar a 1/8 de sua capacidade total? Nessa lógica, quanto maior o tempo, menor é o resultado obtido).
A organização retangular – também conhecida como análise dimensional ou produto de medidas – pode ter mais questões de seu potencial de complexidade tratadas nas séries iniciais. Algumas propostas envolvem o desafio de descobrir a área de uma superfície, quantas peças cabem em um tabuleiro, o número de casas ou de uma casa específica em jogos com tabelas numéricas. “É comum a criança não entender de início que um retângulo de três fileiras e quatro linhas tenha o mesmo número de casas que um de quatro fileiras e três linhas”, explica Ana Ruth Starepravo, educadora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP). “Familiarizar-se com essa noção é importante para o campo multiplicativo e para a geometria e a percepção do espaço”, argumenta
A análise combinatória – conteúdo antes reservado às turmas do Ensino Médio – ganha lugar nas séries iniciais. Os desafios que desenvolvem combinação são adaptados para ficar ao alcance do entendimento dos alunos menores. No início, a garotada geralmente faz representações usando desenhos ou identificando, com outras notações, elemento por elemento no papel e, somente depois, faz a contagem.
Essa estratégia é útil e importante para a compreensão da operação, mas, quando diferentes maneiras de calcular são discutidas pelo grupo e validadas pelo professor e a grandeza dos números envolvidos cresce, é hora de sistematizar o conhecimento. “É preciso dar conta das ideias que estão por trás do concreto”, explica Esther Pillar Grossi, doutora em psicologia da inteligência e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação (Geempa), em Porto Alegre. “É importante ter algo que possa ser generalizado, um conhecimento já incorporado e que possa ser usado sem ser preciso inventar uma estratégia a cada problema.”
Saber armar conta sem saber o porquê não faz sentido
A ideia de que dispomos de um aglomerado de saberes – espécie de rede maleável e aberta que se reorganiza a cada novo conhecimento adquirido, criando novas relações –, trabalhada por seguidores de Vergnaud, remete à visão de que não há sentido em separar o aprendizado das operações, mas aproveitar as relações estabelecidas para avançar no estudo da Matemática (leia mais no quadro abaixo).
Mudança de verdade
Romper com a educação matemática tradicional é uma atitude válida desde que a mudança seja construída com consistência pelo educador e embasada por conhecimentos concretos. “O que mais ouço em formações de professores são discursos estereotipados e vazios, como o clichê de desenvolver o raciocínio lógico e de estimular que as crianças ‘vivenciem’ os problemas”, conta Silvia Swain Canoas, docente da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e especialista em campo multiplicativo. “Quando pergunto que tipo de prática propicia esses objetivos, eles repetem o velho esquema linear de trabalho com as operações.” Para ela, uma das maiores dificuldades dos professores é o fato de não compreenderem realmente o que se busca com o uso do campo multiplicativo. É preciso ter clareza de que trabalhar nessa linha é oferecer oportunidades de estabelecer mais relações matemáticas com as mesmas operações que são trabalhadas no ensino tradicional. Primeiro, o professor deve saber quais delas podem ser trabalhadas nas séries iniciais – a proporcionalidade (direta e inversa), a organização espacial e a combinatória. Quanto mais amplo for o conhecimento do professor sobre esses conceitos, maior facilidade ele terá para reconhecer os tipos de problema. Assim, a tendência é que a diversidade de questões e de resoluções cresça, assim como a rede de saberes do próprio aluno.Sob esse enfoque, saber armar uma conta sem entender o porquê da escolha da operação não faz sentido. Um termômetro disso é a necessidade de a criança perguntar qual operação deve ser utilizada em cada problema. “Pode-se estabelecer uma analogia com a informática”, diz Jorge Falcão, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Qualquer programador faz o computador calcular. O desafio é conseguir que a máquina interprete o problema e decida qual operação realizar.”
De todo modo, o algoritmo não deve ser desprezado, mas é crucial que a criança compreenda o que é o resto, por exemplo, sem pensar que seja simplesmente um dos elementos dos quais tem de dar conta para executar o algoritmo da divisão. Aquela que enxergar além disso nas séries iniciais sairá em vantagem no percurso de compreensão da Matemática.
/revistaescola.abril.com.br/matematica/fundamentos/multiplicacao-divisao-ja-series-iniciais-500495.shtml/
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